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Construções Rurais
O povoamento em aglomeração, ainda hoje a expressão concreta da forma como o homem se fixou no Nordeste Transmontano, tem as suas raízes no Neolítico, vindo a desenvolver-se, progressivamente, por todo o Calcolítico e Idade do Ferro, com o estabelecimento das primeiras comunidades proto-urbanas organizadas e sedentárias e posteriormente, com os arroteamentos romanos e suevo-visigóticos. As dificuldades das comunicações, a escassez de solos férteis e aráveis e o rigor do clima impuseram a concentração urbana e a vivência foi ajustada às exigências do meio através de vínculos de solidariedade e de partilha que precocemente se materializaram nas práticas comunitárias.
Nas áreas montanhosas as aglomerações primitivas alcandoraram-se em posições defensivas e desceram apenas à proximidade dos campos férteis e dos caminhos mais movimentados com a institucionalização da pax romana e a concertação das identidades ibéricas mas, assim mesmo, sujeitas como as demais na raia seca e no planalto aberto, a algaras e pilhagens que muito as arruinaram. Com o devir dos tempos, alguns destes povoados, poucos contudo, terão mantido o seu assento primitivo. Muitos desapareceram totalmente, restando apenas um vago topónimo ou um registo arqueológico, e outros, ainda, transferiram a posição para local próximo, mais protegido ou mais expansível.
Estes povoados e os que lhe sucederam constituíram, como ainda hoje, centros sociais onde se congrega o esforço de organização das atividades e o estabelecimento das funções que lhe estão associadas, desenvolveram relações de afinidade e de concertação comunitária e atraíram clientelas interessadas na qualidade dos seus produtos.
Edifício e edificado moldaram-se às necessidades da população, aos hábitos e costumes que se foram criando, às tradições que pouco a pouco se sedimentaram.
A introdução de novas culturas (o centeio na Idade Média, o milho com as Descobertas, e a batata com as Invasões Francesas), o desafogo auferido com a chegada do ouro brasileiro no séc. XVIII e o recrudescimento demográfico que se viria a saldar, afinal, já em época contemporânea, num massivo movimento migratório, constituem os principais fatores que contribuíram para as redefinições do perfil urbano de cada povoado, sem prejuízo da tipologia do habitat. Em linhas gerais, os povoados caraterizam-se pela localização preferencial nas proximidades de uma linha de água que alimenta um lameiro afolhado em bocage com courelas e cortinhas, ou na vertente soalheira do planalto, protegida da nortada e com amplo domínio visual que previnam surpresas e ameaças. Acresce em torno um anel de policultura, trigais e centeeiras em afolhamento bienal com pousios para pastagem, extensos soutos e montados.
Os aglomerados dispõem de um ou mais núcleos gerados em diferentes oportunidades de desenvolvimento, constituindo bairros acoplados mas individualizados pela toponímia, que cresceram de forma orgânica em função das acessibilidades ou enquistaram à margem da teia viária que se foi urdindo.
A fisiografia e a propriedade fundiária determinam a estrutura e as casas vão surgindo no encosto umas das outras, em frentes compactas, de onde a onde interrompidas por um eido ou uma travessa. As frentes encontram-se volvidas às ruas em alinhamentos contínuos, com as hortas e cortinhas nos tardozes.
Nas áreas planálticas de Miranda, Bragança e Mogadouro, onde se cria gado grosso e os assentos de lavoura excedem a dimensão usual, as unidades desenvolvem o seu edificado em torno de um terreiro ou pátio – a curralada, com acesso por uma porta carral rasgada no alinhamento da fachada. Na montanha as explorações agropastoris, que se limitam ao gado miúdo, prescindem desta organização ou assumem-na a uma escala reduzida.
Na povoação as ruas são geralmente estreitas e entrecortadas, de terra batida ou em calçadas. No miolo, quase sempre em lugar central, destaca-se a igreja, com adro fronteiro, cerrado ou integrando a via pública e fazendo dela a sua “praça maior”. É aqui que se sente o palpitar do povo, reunido para as funções e preceitos dominicais, no lazer do fim de semana e no render do dia de trabalho. Afora estas ocasiões, tudo é deserto com a população reduzida e envelhecida dedicada à sua lavoura. Além da igreja, existe uma outra capela sem culto permanente, com orago da devoção local. À entrada da povoação o orago é normalmente atribuído a S. Sebastião, que protege a estrada da guerra, da peste e da fome. Os edifícios não ultrapassam o segundo piso quando são para habitação, reservando o superior a esta função. Quando se limitam a um piso apenas, este é térreo e de apoio à lavoura ou à vida doméstica, para arrumos de alfaias e lenha, cortes, galinheiro, adega, lagar, celeiro, palheiro, ou forno. O acesso ao segundo nível é exterior, por escada de pedra, adossada à fachada e lançada a um patim ou a uma varanda longitudinal coberta com o avanço do beirado, que toscas colunas de madeira, raramente de pedra, sustentam.
Em alguns casos a varanda é fechada com tabique e até com tapumes entrançados de varas e barro e mesmo de palha (como em Guadramil) e quando as pedreiras locais facilitam a esfoliação porque a clivagem é favorável, utilizam-se na sustentação monólitos laminares ou longuíssimos esteios de xisto (patelas), como pode ver-se em Vilar Seco da Lomba e em Rio Frio. Também existem numerosos exemplares da sobrevivência de interessantes balaustradas barrocas em cantaria de granito com remates de volutas, coevas do áureo séc. XVIII, importadas por casas pouco menos que modestas e em plena região de xisto, por exemplo, em Vilarinho, em Cova de Lua, em Rabal e em Deilão. Contudo, na sua maioria, estas varandas de acesso apresentam guarda-corpo simples em barrotes ou ripas de madeira fincados a prumo, tabuado corrido entre o chapim e o corrimão, para proteção do vento (em Rio de Onor e Guadramil) e, mais raramente, em reixas (em Mora) e em tábuas recortadas com curvas e contracurvas. As varandas de sacada são pouco comuns, mas merecem referência alguns exemplares com a forma de balcões apoiados em longos cachorros de pedra, de influência espanhola, como nas proximidades de Miranda do Douro, designadamente em Picote (mais rebuscadas) e em Palaçoulo (mais rústicas).
As paredes são, regra corrente, construídas no material disponível nas imediações – o granito ou o xisto. Reservava-se às igrejas e capelas e às casas de lavoura mais abonadas a opção de importar boa cantaria quando o xisto das pedreiras locais não garantia a qualidade dos acabamentos.
Em quase toda a TFT o xisto foi o recurso corrente e com ele se alçaram paredes e muros, pardos quando nus, variando a intensidade da cor entre o ocre amarelo e o vermelho crestado, assumido pela pedra e pelo barro das argamassas.
A exclusividade do granito regista-se apenas em algumas povoações das serras de Montesinho e Coroa, no flanco nascente da serra da Nogueira, no Douro Raiano e numa boa parte do planalto mirandês onde a quantidade e qualidade da pedra permitiu mesmo o corte local de grossos silhares com que se alçaram paredes de perpianho de junta seca (com exemplares em Pinheiro Novo e Moimenta). Mas o efeito mais surpreendente surge da aplicação mista das duas rochas, o xisto no empilhamento e o granito nas travações de contrafiamento e nas molduras dos vãos. É o caso corrente nas áreas de contacto geológico das formações metamórficas com as intrusões plutónicas. Registam-se interessantes exemplos pela diversidade cromática e pela própria estereotomia em Ifanes, Cércio, Caçarelhos e Rebordainhos.
Vale a pena, também, atentar nos processos construtivos que a sabedoria popular pôs em prática para obviar a falta de qualidade de algum xisto que ocorre muito fragmentado ou friável.
Nestas situações, o empilhamento é feito com lascas pacientemente sobrepostas, alçando paredes duplas com travação transversal, estendendo horizontalmente caibros de madeira que distribuem as cargas impedindo a deformação dos arcos de descarga que escarçoam os vãos ou aliviam as vergas quando aqueles não estão presentes (exemplos de Babe, Paçó e Rio Frio).
Nestas alvenarias, em que não há recurso a elementos resistentes de granito, a contenção dos vãos é feita com alizares de madeira (como em Rio de Onor, Guadramil ou Ousilhão) ou, menos frequentemente, com placas de xisto colocadas transversalmente como tranqueiros, peitoris e padieiras (em Atenor).
As molduras propriamente ditas dos vãos de portas e janelas raramente são elevadas, uma vez que esta opção decorre da necessidade de se rematarem os emboços e rebocos, pouco utilizados nesta região, pelo menos até ao séc. XX. Contudo, conservam-se molduras muito interessantes pelo recorte e lavor das cantarias, que remontam ao séc. XVIII, como pode ver-se em Moimenta, em S. Martinho de Angueira ou em Quintanilha; janelas que apresentam o peitoril em cornija saliente (em Santa Comba de Rossas, Paçó, Sortes); portas carrais que incluem cronograma relevado ou insculpido no centro da torsa. Merece ainda referência pelo seu aparato ingénuo, a decoração que ostentam algumas placas de lousa, com motivos e legendas gravadas (com exemplos em Quintanilha).
As coberturas são quase sempre em duas águas, justapondo-se as casas pelo encosto das empenas. Com uma só água têm-se os cobertos e outras dependências agrícolas de pequena dimensão, quer isoladas, quer integradas no conjunto edificado. As coberturas com quatro águas são muito menos frequentes, registando-se, geralmente, em edifícios isolados.
O material tradicionalmente utilizado nas coberturas era a palha colmaça atada ao ripado da tosca armação e com o reforço de arjões estendidos e bem presos à estrutura, que impediam o vento de a levantar. É um sistema realmente eficiente quanto à impermeabilização e ao conforto térmico, com origem na pré-história, mas tinha, como desvantagem, a necessidade de substituição periódica da palha, que apodrecia e, sobretudo, o perigo dos incêndios e da sua propagação incontrolável. Nos Pinheiros, por exemplo, ainda hoje é possível encontrar algumas casas colmaças, mas a maioria delas são já dependências não habitadas. Nas áreas onde o solo é xistoso e permite retirar placas finas e largas, a palha é preterida por este recurso, muito mais estável e seguro, mas mais pesado sobre a estrutura e menos eficaz no isolamento térmico. Neste caso, as placas são simplesmente colocadas sobre o ripado da armação, em disposição regular ou sem regra alguma definida, numa sobreposição em escama descendente e entrecruzando-as alternadamente na cumeeira. Na Lomba (Vinhais) e na Lombada (Bragança) as placas engrenam alternadamente na cumeeira, formando uma crista que as ajuda a firmar.
Nas aldeias melhor servidas de acesso por estrada ou caminho de ferro, a industrialização e as redes de comercialização disponibilizaram materiais e artigos de construção civil, caros, é certo, mas que rapidamente se generalizaram pela sua duração e fácil aplicação. Foi o caso das telhas cerâmicas, já conhecidas desde o Império Romano, mas que, nesta região, se aplicavam apenas nas Igrejas e Capelas e nas casas mais ricas, sendo fabricadas grosseiramente nalguns fornos telheiros da região, com moldes de tipo mourisco e dimensão variável.
As novas telhas que no final do séc. XIX estavam já disponíveis em todo o interior do país eram de patente francesa, ainda hoje conhecidas por “tipo Marselha”, diferentes das tradicionalmente utilizadas na TFT mas, efetivamente, mais eficientes. Daí que nas recônditas aldeias do interior, com difícil acesso e sem existência de barreiros que permitissem o fabrico local da telha mourisca, os telhados mais antigos apresentem telha “tipo Marselha”.
Curiosamente, algumas aldeias da TFT, como Pinheiro Novo, evidenciam ainda toda a evolução das coberturas – a palha colmaça, as patelas de xisto ou lousa, a telha mourisca, a telha francesa, elementos de ardósia oriundos de Espanha e de importação recente e até soluções combinadas muito bem concebidas.
Na Mofreita (Vinhais), por exemplo, era costume cobrir a parte mais elevada das águas e a mais baixa com lousa, até aos beirais, que se firmavam com o peso de alvos blocos de quartzo, criando um efeito muito decorativo.
O prolongamento dos beirados sobre os panos de parede é curto, mesmo quando a cobertura recorre à telha, não sendo comum a utilização de telhão nem a sobreposição sucessiva de telhas, como se vê, por exemplo, na cidade velha de Miranda do Douro. Esta circunstância e a grande proximidade dos vãos de janela do capiamento das paredes, que muitas vezes se resume apenas à altura da própria verga, implicam infiltrações, com a saturação permanente das alvenarias e o apodrecimento dos madeiramentos. A varanda, ao prolongar a cobertura para além da fachada respetiva, se por um lado dificulta o arejamento e a iluminação interior, por outro, contraria estas infiltrações e diminui o desconforto provocado pelo excessivo teor de humidade.
Deve, porém, inferir-se que há muitas soluções interessantes de proteção das fachadas pelo prolongamento dos beirados. Uma delas consiste no apoio em cachorros de pedra de pequenas escoras de madeira que suspendem a projeção da cobertura, como pode ver-se em alguns portais das aldeias de Ifanes e Duas Igrejas.
Ainda no que respeita às coberturas, deve referir-se que a evacuação dos fumos da lareira se fazia naturalmente pela telha-vã, sem recurso a chaminés e, quando muito, com pequenas trapeiras nos telhados, conseguidas com o alteamento de algumas telhas. Contudo, há exemplos de engenhosas chaminés em coberturas de lousa, os bueiros, certamente não muito antigas, mas que tiveram alguma generalização como pode ver-se, por exemplo, em Rio de Onor e noutras aldeias das serras da Coroa e de Montesinho.
Outra questão interessante é a cor e a integração do aglomerado na paisagem.
A preocupação de ajustar os edifícios ao perfil morfológico do terreno, por um lado por uma questão de custos e de reforço estrutural e por outro para que o embasamento maciço da cozinha reduzisse o risco de incêndio, valorizou a dimensão linear das construções e contribuiu decididamente para que a sua integração volumétrica se fizesse de forma equilibrada. É neste aspeto que as intervenções recentes causam geralmente mais perturbação. A volumetria exagerada, a proeminência vertical e a localização isolada provocam roturas irreversíveis no conjunto onde se inserem. Mas o equilíbrio não resulta apenas da geometria. A inexistência de perímetro rígido que o coberto vegetal, por si só, já torna difuso e, sobretudo, o recurso a materiais de construção proporcionados pela geologia local, com texturas e cores que não agridem a serenidade do cenário, contribuem para uma integração harmoniosa.
Aliás, o custo elevado da cal, obtida por calcinação do calcário em escassos fornos que serviam uma grande região (como os de Dine, Cova de Lua ou Picote) a reduzia ao seu papel de ligante nas argamassas (muitas vezes apenas de barro) e tornava proibitivo o seu uso comum na preparação de rebocos e na caiação. Só os locais de culto religioso e as casas mais ricas recorriam à caiação plena das fachadas, sobre rebocos grosseiros ou diretamente sobre o próprio aparelho da alvenaria. Por questões higiénicas e estéticas podiam debruar-se com faixas alvas os vãos de portas e janelas e respingar o telhado para melhor o conservar. Assim, os aglomerados quase passavam despercebidos na paisagem, confundindo-se com a própria natureza e apenas ressaltavam a igreja e um ou outro edifício mais cuidado, já que a própria cal das coberturas se apagava com a humidade do inverno.
Mas a arquitetura rural não se esgota no edificado destinado à habitação e aos seus anexos. Há outras construções rurais, simples, que pela sua tipicidade merecem particular referência nomeadamente os pombais, os lagares, os moinhos de água, os pisões e as forjas, expressão viva do espírito comunitário que carateriza este povo.